sexta-feira, 16 de setembro de 2011

CIDADE AZUL: 17 anos depois do acidente, 4 famílias ainda esperam por indenização

IMÓVEL DA EMPRESA FOI A LEILÃO NO DIA 22 DE JUNHO. ACIDENTE OCORRIDO EM MAIO DE 1994 NA RODOVIA RIO CLARO-PIRACICABA VITIMOU 19 PESSOAS

Por Marcelo Lapola

Passados 17 anos a maior tragédia automobilística da história de Rio Claro ainda ecoa no município. A fatídica e trágica noite de 20 de maio de 1994 está perto de ter seu último capítulo encerrado. Isso porque houve, no dia 22 de junho, o leilão judicial de um imóvel onde antes funcionava a Viação Cidade Azul, localizado na Avenida Presidente Kennedy. A proposta vencedora para arremate da área foi apresentada por um empresário local, no valor de aproximadamente R$ 5 milhões.

No acidente entre o ônibus da extinta Cidade Azul e o caminhão-tanque da empresa de Transportes Ceam Ltda 19 pessoas morreram. Das 17 famílias que perderam seus entes queridos, 13 foram indenizadas pela Cidade Azul por terem aceito as condições de um acordo judicial firmado tempos depois. Outras quatro, que não aceitaram o acordo, deverão receber a indenização após a homologação do leilão do imóvel por parte da Justiça.

As informações são do advogado das famílias, Carlos Roberto Marrichi. Segundo ele, os recursos que deverão ser destinados a essas pessoas somam cerca de R$ 2,5 milhões, incluindo os honorários advocatícios.

Mas, segundo Marrichi, o imóvel em questão também é objeto de garantia judicial em outros processos contra a empresa. "Acredito que boa parte das pendências deverão ser pagas pois a oferta feita no arremate do imóvel é boa", salientou Marrichi.

Segundo Marrichi, falta ainda a Justiça homologar o arremate e aguardar o prazo para apresentação de recurso, por parte da Viação Cidade Azul.

Outro advogado, o que representa o empresário que apresentou a intenção de compra do imóvel da Cidade Azul durante o leilão, salienta que a proposta apresentada, cerca de R$ 5 milhões, deve cobrir cerca de 90% das penhoras relativas ao prédio, incluindo as indenizações às 4 famílias das vítimas do acidente na SP-127.

Ainda cabe recurso judicial por parte da Viação Cidade Azul, conforme informações dos advogados.

Procurado pela reportagem do JC na tarde dessa sexta (05), o advogado que representa a Viação Cidade Azul no caso, Arlindo Chinelatto Filho não deu retorno até o fechamento da edição e deverá se pronunciar nos próximos dias a respeito do assunto.

Na estrada, que era de pista única, foi formada uma poça de piche. No Jornal Cidade de Rio Claro, de 22 de maio de 1994, é possível ter noção do horror vivido: “O ônibus transformou-se numa montanha de ferros amassados. Com o forte impacto, vários corpos foram arremessados para fora do ônibus. Os estudantes foram mutilados. A rodovia ficou tomada por piche e sangue. A Polícia Rodoviária teve muito trabalho para controlar a situação. Centenas de pessoas chegavam em busca de informações sobre familiares que estudavam na Unimep. Dor e alívio marcavam os rostos daqueles que perdiam parentes e amigos”. Em seu livro "A Morte como Sustento" a jornalista Gisele Marques retrata o drama vivido pelas famílias que perderam seus entes queridos naquela noite e os relatos de sobreviventes. (http://amortecomosustento.blogspot.com).

“A colisão, que causou tanto estrago, aconteceu porque o motorista do ônibus fez uma ultrapassagem imprudente. A culpa de Coroné consta no Boletim de Ocorrência e na sentença da justiça, mas alguns depoimentos de estudantes, publicados nos jornais da época, confirmam que a história foi diferente”, diz Gisele em seu livro.

“Na mesma edição do Jornal Cidade do dia 22 de maio de 1994, os estudantes confirmaram que Coroné era um profissional prudente e responsável. Por este motivo, antes do desastre, alguns alunos pediram transferência de ônibus para poder viajar todos os dias com ele no volante. Ironicamente, no dia 20 de maio, o recém-contratado da empresa, Daniel Bento de Jesus, guiava o ônibus: “Como tinha sido contratado recentemente, Bento de Jesus cumpria o ritual de acompanhamento por um motorista mais experiente. No caso, o Coroné”. Apesar do erro ter sido cometido pelo novato motorista, foi Coroné quem levou a culpa”, completa a escritora e jornalista rio-clarense.

(Fonte: http://jornalcidade.uol.com.br/rioclaro/seguranca/seguranca/79890--CIDADE-AZUL:-17-anos-depois-do-acidente---4-familias-ainda-esperam-por-indenizacao--)



Versão impressa disponível:

Biblioteca Pública Municipal Maria Victoria Alem Jorge
Centro Cultural Roberto Palmari

Endereço: Rua 2 nº 2880 - Vila Operária - Anexo ao Lago Azul
Bairro: Centro - Telefone: (19) 3522-8002

quarta-feira, 4 de junho de 2008

A Morte Como Sustento

O dia-a-dia dos profissionais
que convivem com a dor alheia

Giselle Marques

2a edição - maio de 2004
Reportagem, textos e revisão: Giselle Marques
Orientação: Marcel Cheida
Puc-Campinas


Maio de 2004
2a edição
Dedico este livro em memória
de minha tia Cleusenir Marques Brunholi
e de todos os meus parentes e amigos
que perderam a vida nas estradas.
Quero deixar o meu muito obrigada
a todas as pessoas vivas
que me fazem o bem.

Sumário

Prefácio
Apresentação
I - O que você vai ser quando morrer?
II - A hora da misericórdia
III - Um nove dois
IV - Notícia Ruim
V - O corpo de Nercina
VI - SP127 - A duplicação
VII - Os funerais de Campinas
VIII - Quem crê em Deus jamais morrerá
IX - Funexpo 2003
X - A morte não existe

Prefácio

Por José Arbex Jr.
Jornalista e Doutor em História Social pela USP


Qualquer pessoa educada segundo os princípios e concepções das religiões monoteístas que estão na base da civilização ocidental (judaísmo, cristianismo e islamismo) concordará, facilmente, com a afirmação de que a vida eterna é a recompensa oferecida aos que louvaram a Deus e praticaram o bem. Variam as metáforas e hipóteses sobre como será a vida eterna no além, mas não se questiona a idéia central. A morte, nessa perspectiva, aparece como punição aplicável aos que não se elevaram às alturas do paraíso. É a manifestação da ira divina.

Nada poderia ser mais estranho aos olhos de um seguidor das doutrinas orientais.

Para o hinduísmo, a vida é um período transitório no vasto complexo de um universo permanentemente em mutação, movido por um jogo de forças em oposição. Shiva representa destruição, agressividade, morte; Vishnu, no lado oposto, é a construção, compreensão, vida; Krishna é uma espécie de síntese. Muito esquematicamente, e correndo o risco de simplificar demais as coisas, é como se Shiva representasse as pulsões que Sigmund Freud qualificou como Tanatos; Vishnu, nesse caso, seria Eros; Krishna representaria um objetivo de equilíbrio perseguido pelo processo psicanalítico.

Também o taoísmo - uma espécie de meio caminho entre filosofia e religião, criado por Lao Tse (velho sábio, em chinês) cerca de 700 anos aC, quando, supostamente, escreveu o livro Tao Te King - trata a morte como um componente necessário ao movimento universal e incessante de todas as coisas. Para os taoístas, há duas grandes qualidades de forças: o pólo yang (o princípio masculino, ativo, extrovertido, quente) e o pólo yin (o princípio feminino, passivo, introvertido, frio). Vida e morte são o resultado intercambiável do jogo bipolar movido por essas forças. Não faz o menor sentido privilegiar um dos pólos e tentar ignorar o outro. Não há claro sem escuro, calor sem frio, positivo sem negativo, vida sem morte.

Outras tantas filosofias e doutrinas orientais, como o zen budismo, seguem esses princípios básicos. Aliás, como resultado prático, elas transformam a morte em conselheira do bem viver. Para o taoísmo, por exemplo, a sabedoria suprema do ser humano consiste em manter o bom humor, já que ele sabe que poderá morrer no instante seguinte; apenas aqueles que são loucos o suficiente para se julgarem eternos podem perder o próprio tempo com irritação, brigas inúteis, obsessões, fixações, rituais burocráticos sem qualquer sentido.

Essa postura, obviamente, intensifica, dá mais brilho e gosto à sensação de estar vivo. Para usar uma metáfora emprestada à publicidade, é como colocar uma tarja preta em volta de letras ou figuras vermelhas sobre fundo branco, como faz a Coca Cola em seus outdoors. A tarja preta faz com que a cor vermelha abandone o fundo branco e dê um salto na direção da retina, causando uma impressão muito mais forte.

A consciência permanente da morte, não como castigo ou punição, mas como possibilidade natural e inexorável, produz efeito semelhante sobre a sensação de estar vivo. Quem sabe que pode morrer no instante seguinte não tem tempo para se preocupar com besteiras. Nem leva a si próprio tão a sério.

Uma pequena anedota ilustra bem essa postura. Conta-se que o imperador chinês, impressionado com a fama de Lao Tse, envia os seus representantes para convida-lo a participar da corte. Os agentes do imperador encontram Lao Tse brincando com pequenas tartaruguinhas, à beira de um riacho. Ao tomar conhecimento do convite, o velho começa a rir, e responde aos oficiais: “Eu soube que na corte do imperador existe o casco de uma tartaruga gigante. É verdade isso?”. Intrigados com a pergunta, os oficiais confirmam. A tartaruga era um animal sagrado na antiga China; o seu casco representava a abóbada do universo. Então, o velho continua: “Pois se vocês pudessem perguntar para a tartaruga gigante onde ele preferia estar, ressequida na corte ou brincando na água, o que vocês acham que ela responderia?” Os oficiais ficam em silêncio. Entenderam o sentido da pergunta, mas não querem se comprometer com uma resposta que poderia irritar o imperador. Rindo novamente, Lao Tse se despede e diz: “Diga ao imperador que essa foi a minha resposta.”

Os filósofos pré-socráticos também tinham uma percepção dinâmica da morte. Heráclito, por exemplo, afirmava que nunca veríamos o mesmo rio duas vezes, já que suas águas estavam em movimento permanente. Apenas tínhamos a ilusão de se tratar do mesmo rio. O mesmo se aplicava a toda a natureza. A consciência deveria fazer um esforço de entender a incessante transformação de todas as coisas, segundo o processo de nascimento, vida e morte.

A idéia da imortalidade, na filosofia ocidental, ganhou força com Platão, para quem o mundo das aparências era o mundo do engano, da ilusão, do erro. Essa concepção foi tratada de forma magnífica no mito da caverna, quando Platão defende a idéia de que tudo o que os nossos sentidos percebem são sombras projetadas na parede por uma fonte de luz exterior. Se queremos conhecer as verdades das coisas, devemos abandonar o mundo das aparências, da carne, da matéria que apodrece e morre, e dirigir os nossos olhares e pensamentos para a luz imaterial da essência, do espírito. A verdade deve ser buscada no mundo das idéias, não na observação do mundo percebido pelo corpo (daí que o ideal seria que as sociedades fossem governadas por filósofos).

Opera-se, assim, na filosofia ocidental, uma divisão radical entre corpo e alma, matéria e espírito. A imortalidade passa a ser um atributo do espírito, ao passo que a morte pertence ao reino da matéria.

Ao longo da Idade Média, particularmente após a publicação da Cidade de Deus, por Santo Agostinho, a Igreja Católica transformou em dogma a idéia platônica da degradação e morte da carne, fonte do pecado e do erro. No auge de seu controle espiritual, era proibida até mesmo a observação da natureza, desenvolvida por Aristóteles e seus seguidores, como fonte de conhecimento. O mundo deveria ser explicado pelo texto dos sábios e doutores da Igreja. A morte, mais do que nunca, aparecia como expiação, punição, lembrança da pequenez do homem face à imensidão do poder de Deus.

O edifício monolítico católico começou a ser demolido pelos ciclos de navegações e descobrimentos científicos promovidos pela nascente burguesia, bem como pelos cismas no interior da Igreja Católica (incluindo o surgimento do protestantismo). Isso abriu brechas para que o homem renascentista fizesse calar a voz de Deus, colocando no centro a Razão científica. Foi o suficiente para que as indagações sobre a morte ganhassem crescente complexidade, em todos os campos do conhecimento, da arte e da cultura.

Não por acaso, o mais famoso monólogo da dramaturgia universal começa com uma pergunta absolutamente essencial sobre vida e morte: “Ser ou não ser, eis a questão”. Hamlet compara a morte ao sonho, e coloca a possibilidade do suicídio como forma de escapar às agruras e sofrimentos do mundo: “Morrer; dormir; só isso. E com o sono – dizem – extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente desejável. Morrer – dormir – dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos que hão de vir no sono da morte, quando tivermos escapado ao tumulto vital nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão que dá à desventura uma vida tão longa.”

Hamlet inaugurou a subjetividade do homem moderno ocidental, já órfão das verdades divinas, mas ainda angustiado frente ao mistério da morte. Hamlet é o primeiro herói moderno por ser, ao mesmo tempo, trágico e autoconsciente. É o primeiro a observar, com ironia e horror, não apenas a sua própria obsessão (o mandado do fantasma de seu pai: matar o tio assassino e usurpador do trono), mas também as conseqüências de seus atos. É também o primeiro a se envolver até a morte num ritual de expiação, pessoal ou comunal. Com Hamlet, a morte torna-se um assunto de dimensão psicológica.

Também nesse campo, como em todos os outros, o homem moderno angustiado e órfão da fé volta-se para a Razão, em busca de soluções. A morte é transformada em assunto científico e pesquisa de laboratório. É mil vezes explicada, adiada, constrangida.

No século 20, o Estado totalitário (Stalin, Hitler, Mao) cria a morte industrial, em imensos campos de extermínio; os Estados Unidos inauguram a morte nuclear (Hiroxima e Nagasáki). Em outra vertente, pesquisas biotecnológicas prometem prolongar espetacularmente a vida média dos cidadãos, em algumas décadas; a criogenia cria métodos de conservação indefinida dos corpos, com possibilidade de ressurreição e acoplamento de cérebros a máquinas; ninguém duvida de que a ciência encontrará uma solução, cedo ou tarde, para a epidemia da Aids ou quaisquer outras, como a Sars.

A morte passa a ser uma ilustre dama, cortejada pelos laboratórios de guerra e seus irmãos gêmeos da indústria farmacêutica.

Mas, como ela acontece em nosso cotidiano contemporâneo? O que é a morte para nós, após todas as “experiências” totalitárias do século 20, incluindo a ameaça do holocausto nuclear durante a Guerra Fria? Como nós, concretamente, nos relacionamos com a morte?

O presente trabalho de Giselle Marques é muito importante e oportuno, por recolocar questões e ao mesmo tempo oferecer indicações preciosas para reflexões aprofundadas sobre o tema. A pesquisa ficou ainda mais rica pela escolha dos entrevistados, que fazem parte de mundos tão diversos (jornalismo, psiquiatria, psicanálise, empresariado). Elas oferecem um panorama singular. A própria Giselle aponta para as dificuldades de encontrar fontes teóricas ou mesmo trabalhos empíricos sobre o tema “morte” na perspectiva abordada por ela. Isso, certamente, já reflete o tabu que a cultura ocidental ergueu sobre um tema em geral considerado indesejável e “maldito”. Por tudo isso, o seu trabalho, certamente corajoso e incomum, é muito bem vindo.

Concluo com uma saudação a Giselle e a todos os seus leitores, derivada do sânscrito: “Namaste!”. Seu significado é muito profundo. Tomado ao pé da letra, quer dizer: “Eu me curvo diante de ti”. Mas, alguns praticantes do budismo preferem um outro significado, muito mais criativo e... vital!: “Que os deuses dentro de mim sorriam para os deuses dentro de ti”. E a vida continua.

Apresentação

Por Giselle Marques

O Brasil registra um milhão de óbitos por ano e a humanidade se transforma em estatística a cada dia. No município de Campinas o número de funerais gira em torno de 600 por mês e desses, a morte violenta abate 130.

O inverno atinge grande parte das pessoas mais velhas com suas gripes e pneumonias. Os mais jovens se matam no trânsito e a cura do câncer precisaria ser vendida em comprimidos nas farmácias. Existem falecimentos de maneiras inusitadas, como um senhor que estava colhendo manga para os netos quando caiu da árvore: não resistiu aos ferimentos.

Alguns procuram a inexistência em lâminas e cordas.

Entre tantos falecimentos existem profissionais especializados e experientes para lidar com a morte, seja para cuidar de um moribundo, melhorar a coloração de um corpo sem vida ou construir túmulos.

Os rituais existem para simbolizar o fim da vida. Com o tempo, os funerais foram modificados. O maior motivo para as mudanças é o avanço da medicina que permite o prolongamento da vida ou do sofrimento.

Se velar um corpo na sala da própria casa era comum, hoje, com as famílias dispersas, a correria das grandes cidades, prédios e elevadores, o mercado funerário se aperfeiçoa a cada dia para cuidar de todos os detalhes.

Ao conviver com o sofrimento e a morte alheia, enfermeiros, médicos, sepultadores, floristas, diretores e agentes funerários precisam enfrentar o preconceito de quem não entende que o trabalho consiste em amenizar o choque causado por aquilo que é iminente, o fim.

Da mesma maneira que o proprietário da mais tradicional funerária de Rio Claro, no interior do estado de São Paulo, descobriu como vender aquilo que ninguém quer comprar, este livro-reportagem procura desvendar realidades pouco exploradas na sociedade ocidental onde homens e mulheres fazem de conta que esqueceram a limitação da própria existência.

Discutir o sexo com quem fez voto de castidade é como debater a morte com quem fez voto de eternidade. E o ser humano, portador de uma vaidade quase insana, parece não admitir que um dia terá que se ausentar deste mundo.

Seria um equívoco afirmar que não existe material algum sobre o assunto, mas é muitas vezes escondido da mídia de massa ou de difícil e complexo acesso. O fim da vida é um assunto vasto e que atinge a todos, indiscriminadamente. A vida está repleta de morte e as pessoas tentam explicá-la e simbolizá-la de várias maneiras nos filmes, novelas, pinturas, charges, livros e jornais.

Os relatos contidos neste trabalho são de pessoas que vivem e convivem com o sofrimento, seja nas patologias que matam, na fatídica certeza dos acidentes ou nos constantes rituais fúnebres.

Empresários e profissionais que trabalham para simbolizar a morte fazem deste livro um material que fala de dor, saudade e lucro.

Para marcar a importância da qualidade dos velórios, há cinco anos o Centro de Tecnologia em Administração Funerária (CTAF) organiza a Funexpo, uma exposição funerária que de dois em dois anos traz novidades e tradições, reunindo empresários do Brasil e do mundo.

Diferentes personagens foram selecionados para a realização da pesquisa: o rapaz que teve seu último dia de vida relatado pela mãe e irmã depois de 10 anos de sua morte; o jornalista que noticiou guerras e depois enfrentou as próprias aflições na terapia; a enfermeira que precisou lidar com a morte de crianças e o profissional que tentou organizar o tumulto no Cemitério da Saudade quando aconteceu o sepultamento do prefeito de Campinas, Antônio da Costa Santos, o Toninho do PT, assassinado em 2001.

Ao analisar materiais publicados em livros, sites, revistas, filmes e programas de televisão, foi possível observar a ausência de aprofundamento na abordagem de temas relacionados à morte.

O longa-metragem que pode retratar a vida dos agentes funerários é o filme Sábado, de Ugo Giorgetti. Em uma das situações do filme, três pessoas vivas ficam presas dentro de um elevador com uma pessoa morta. Dois homens são agentes funerários e a mulher é uma publicitária interpretada por Maria Padilha, que repete em desespero: “Eu preciso acreditar em Deus!”.

Existem teses e filosofias que explicam o fim da vida, mas pouco é dito sobre o dia-a-dia de quem não tem tempo para aprender filosofia ou fazer terapia, mas que trabalha em constante contato com o sofrimento das pessoas. No mercado, são poucos os cursos que preparam o profissional para a necessidade de lidar, de forma humana e não técnica, com a presença e o tabu da morte.

As fontes para o livro-reportagem foram escolhidas de acordo com a profissão: o jornalista José Arbex Jr. que conviveu durante anos com guerras e mortes; a psicanalista Adriana Fiori que realizou uma pesquisa, a pedido do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), com 50 famílias que tinham perdido parentes em acidentes no trânsito de São Paulo; o empresário Valdemar Bresciani que, contrariando a tradição de funerárias familiares, desde 2000 é proprietário de uma fábrica de urnas em Santa Catarina (a urna vendida para o funeral do jornalista Roberto Marinho foi feita na empresa Irmãos Bresciani).

Além das fontes citadas, foram feitas visitas pessoais em algumas funerárias, cemitérios, serviços de emergência e residências para que a realidade do dia-a-dia desses profissionais pudesse ser vista de perto, não somente por relatos. Nem todas as fontes puderam estar presentes na narração deste livro, mas cada uma delas foi importante para possibilitar maior conhecimento na elaboração das pautas.

Uma das fontes é meu pai, o que não tira a importância jornalística do fato é que conheci a história da minha família paterna no término das entrevistas para este livro. Eu sabia vagamente que muitos morreram por causa da doença de chagas. Mesmo depois da entrevista, que não foi facilitada pelo fato da fonte ser meu pai, percebo que ainda sei muito pouco sobre os acontecimentos, o que não possibilitou narrar a história com domínio, afinal, Machado não fala de quem já morreu.

Mesmo ciente da obrigação ética e jornalística de ouvir todos os lados de uma história, alguns casos não puderam ser devidamente investigados. A indenização determinada pela justiça de Rio Claro às 19 famílias que perderam parentes em um desastre há 10 anos ainda precisa ser paga a três famílias. Saber os motivos não foi possível por falta de tempo hábil e patrocínio, mas certamente vários pontos de vista tiveram espaço neste livro-reportagem, que vai mostrar uma realidade que poucas pessoas ousam saber.

A narração não obedece a uma ordem cronológica, vai e volta no tempo de acordo com os fatos que se interligam. As duas cidades abordadas para tratar do tema são Rio Claro e Campinas por causa de um acidente ocorrido há 10 anos na Rodovia Fausto Santomauro, a SP-127.

Dois grandes veículos se chocaram. O motorista do ônibus era de Rio Claro e o motorista do caminhão-tanque era de Campinas. O desastre foi comparado a uma situação de um ônibus que cai de uma altura correspondente a nove andares.

O acidente é narrado em sete dos dez capítulos do livro. São abordados os vários estágios da tragédia, desde a cobertura jornalística, quando os repórteres conseguem, muitas vezes, chegar antes do socorro especializado, até os protestos de rio-clarenses e o trabalho de alguns políticos pela duplicação da SP-127.

Depois do título de cada capítulo foram escolhidas citações de livros e músicas que refletem dor ou nostalgia. No primeiro capítulo a frase citada foi retirada de um artigo de jornal sobre a tragédia de 20 de maio de 1994. O artigo foi recortado e guardado durante dez anos por Simone, irmã de Odajyl Pessoa, vítima fatal do acidente ocorrido na SP127. A escolha de poetas, escritores e músicos com menos de 100 anos de idade a partir da data de nascimento foi pré-requisito.
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“Tenta pensar na morte. Tenta realmente pensar nela. Tu não tem que imaginar o teu caixão, ou tua cabeça esparramada num asfalto, nada disso, não é assim que se faz. Apenas imagina o mundo sem a tua presença. Imagina o teu cachorro começando a sentir tua falta depois de uma semana. Imagina os teus 146 CD´s repousando na estante, e teu irmão indeciso quanto ao que fazer com eles agora que tu já não existe. Todas as tuas coisas, e especialmente a expressão das pessoas que tu ama ao se perguntarem o que farão com elas, as tuas coisas. Imagina teus amigos lembrando os melhores momentos que passaram contigo, imagina teu melhor amigo numa mesa de bar com outros amigos propondo, num lapso, que alguém telefone pra ti e te convide pra beber com eles. Imagina o silêncio que se segue”.

Previsões de ano novo feitas nas entranhas de um porco, Daniel Galera

Capítulo I

O que você vai ser quando morrer?


“O céu pesado, nebuloso, da última sexta-feira, parecia prenunciar a tragédia que estaria para desabar sobre a cidade no início da noite” Maria Aurélia G. Silva - 25/5/94


Sexta-feira. Maio de 1994. Céu nublado, temperatura amena. Odajyl Pessoa abriu os olhos, acordou e se vestiu. Não sabia que aquele era o último dia de vida dele e de alguns amigos que entraram no mesmo ônibus. Jyl, como era conhecido em Rio Claro, era um rapaz de 23 anos: moreno, forte e carismático. Trabalhador, paquerador, sonhador.

Estava no último ano da faculdade de Matemática da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Tinha três irmãs e um irmão, pai, mãe, sobrinhos e amigos.
Uma reunião na Condor Engenharia, onde Jyl trabalhava, aconteceu na manhã do dia 20 de maio de 1994. Jyl participou do encontro, mas não trabalhou no restante do dia. Fez coisas incomuns.

Visitou os sobrinhos e brincou. Foi ver o pai no trabalho, falou de seu Passat como se estivesse entregando o carro. Documentação, chaves e mecânica: tudo em ordem. Passou na casa do sócio, Fábio, para conversar sobre o futuro.

Jyl e Fábio planejavam abrir um negócio no ramo de informática. Jyl estava ansioso com a mudança profissional e desabafou com o sócio: “Hoje é o dia mais feliz da minha vida! Essa vida é boa e curta. A gente tem que aproveitar os bons momentos. Uns abrem a porta da tristeza e outros abrem a porta da alegria. Eu, por exemplo, encontrei hoje a chave da porta da felicidade”. Naquele momento, ninguém entendeu.

Depois de 10 anos a família Pessoa relembra, durante a entrevista, a forma com que os avisos sobre a morte de Jyl chegavam. Enquanto isso, em Campinas, a experiente enfermeira Carla Fiori trabalha e sabe quando um doente terminal está preste a morrer. Não de forma sobrenatural, mas pelo cheiro rançoso e pela aparência.

Jyl não percebeu claramente a própria morte. Ele faleceu por causa de um acidente, um pouco depois das sete da noite, a caminho da faculdade. Ao completar 10 anos da ausência de Jyl, a mãe (Constância) e uma das três irmãs (Simone) contam como o dia dele transcorreu, com acontecimentos e palavras que parecem confirmar que algo o atingiria.

Corredores, aventais, agulhas, sangue, macas, feridas, curas e óbitos. Com diferentes perspectivas, mas com a mesma realidade de lidar com o sofrimento alheio, os profissionais da saúde precisam conviver com a morte. São doenças e doentes terminais, acidentados, enfartados e algumas pessoas que conseguem sair de uma complicação para viver por mais algum tempo.

Com 22 anos de experiência profissional na área da saúde, Carla Fiori demorou a entender alguns sentimentos em relação aos dramas que tinha que ver e conviver. Hoje ela é enfermeira do Centro de Atendimento Integral à Mulher da Unicamp (Caism).

O primeiro contato de Carla com a aparência da morte foi na faculdade, onde tanques com pedaços de corpos, chamados de peças, estavam à disposição para o estudo prático do corpo humano. O cheiro de formol entrou nos olhos, no nariz e na garganta: “O primeiro contato foi com aquela carne rígida e gelada”. Ela respirou fundo e pensou: “Eu tenho que pôr a mão, eu tenho que ir pegando”.

Passado o impulso de soltar a carne escura, Carla terminou o curso na Puc-Campinas, obteve o diploma e se especializou. Enfrentou situações que vão além do cheiro de formol. Ela aponta que a maioria dos cursos na área da saúde não prepara emocionalmente os alunos para enfrentarem a morte, mas Carla parece saber lidar com tais situações e explica que a calma que sente diante de doentes terminais é um exemplo que foi ensinado por sua mãe, que era espírita e que soube se despedir do mundo e da família de forma tranqüila.

Quando Carla estudou Enfermagem, a única disciplina que poderia dar suporte emocional para os alunos era a Psiquiatria, pois a professora de aula prática levava os estudantes para o manicômio. Com a experiência, Carla concluiu que é mais difícil lidar com a loucura do outro do que com cadáveres em laboratórios de anatomia. A possibilidade de se identificar com um corpo sem vida é remota, mas ao perceber as atitudes exacerbadas de uma pessoa considerada louca, Carla sentiu medo.

Observar a insanidade mental da pessoa que passa o dia inteiro “catando papel” no manicômio pode trazer o receio de que um dia isso possa acontecer com qualquer um que tenha algo interno a ser resolvido, como a mania de limpeza, o excesso de organização ou qualquer outro hábito que, ao ser intensificado, se torna uma doença digna de tratamento psiquiátrico como, por exemplo, o medo extremo que pode se transformar em Síndrome do Pânico.

Quem opta pela enfermagem conhece que a essência da profissão é cuidar de pessoas que estão doentes. Carla escolheu ser enfermeira, pois não quis cursar Medicina por causa do estereótipo do médico endeusado, onipotente e de difícil acesso. O desejo de Carla era exercer um perfil diferente do profissional de saúde prepotente e distante. Hoje, ela admite que poderia ser uma médica diferente de muitos que mal perguntam o que o paciente está sentindo.

No período em que ainda era estudante, ela não pensou na morte como algo objetivo, mas sabia que o fato estava implícito. Sem sentimentos mórbidos em relação ao assunto, quando Carla precisa parar em um acidente, o que a move não é a curiosidade, mas a vontade de ajudar.

Se pensar na morte alheia é algo tranqüilo para Carla, a idéia do próprio fim apareceu com o passar do tempo: “Quando alguém tem 20 ou 30 anos, existe a sensação de que é eterno, por isso, a ansiedade de um jovem não é transferida para o óbito, mas para as patologias da criança, do adulto, do velho e do doente mental”.

Além de ter estudado Enfermagem na Puc, Carla Fiori é formada pela Escola Superior de Enfermagem D. Ana Guedes, na cidade de Porto, em Portugal. Grande parte da experiência de Carla é voltada para a saúde do idoso e a vocação pode ser explicada por um fato ocorrido na época do estágio feito no Hospital Celso Pierro, no começo da década de 80. Foi o primeiro contato com a morte de uma criança e, segundo ela, “uma experiência péssima”.

O hospital estava em reforma e Carla precisou fazer a transferência de um bebê de oito meses com uma séria cardiopatia. Ele tinha alergia a tudo, sobrevivia com ajuda de aparelhos, não comia a comida do hospital e a mãe tinha que lavar o lençol do bebê na própria casa. No dia em que o pintor estava chegando perto do quarto da criança, deram uma ordem para que Carla a transferisse. E Carla, “como estudante idiota, boba e tonta, mão de obra barata”, concordou. Preparou o local que ia receber o bebê, pegou o oxigênio, o carrinho de emergência e deixou pronto tudo o que era preciso. Desconectou a criança dos aparelhos para atravessar um corredor de cinco metros e, quando chegou no outro quarto com o berço, o bebê “parou”.

Mesmo com o coração parado, existe a tentativa de reanimação e a esperança de que não ocorra um óbito, então “foi aquela correria”. A equipe ficou cerca de duas horas tentando reanimar a criança que voltava e parava, voltava e parava. Enquanto a equipe de enfermeiros e médicos tentava reanimar o coração do bebê, a mãe ficou do lado de fora esperando.

Depois que a equipe desistiu da reanimação, já que o bebê não voltava, a mãe pegou Carla “pelo colarinho” e a chamou de assassina. Emocionalmente, enfermeira não ficou bem depois do óbito do bebê, mas conseguiu entender que a responsabilidade não era dela.

Racionalmente, a criança não tinha saúde para continuar viva e a transferência não poderia ser feita por uma estudante. Não porque um profissional faria o trabalho de forma diferente, mas pela responsabilidade, para poder responder pela morte de uma pessoa.

Depois do trauma, Carla não sofreu punição ou demissão dentro do hospital porque, de qualquer forma, “a criança não sobreviveria por muito mais tempo”.

Carla faz análise e sabe que a terapia é um cuidado que os profissionais da saúde esquecem de procurar. Como enfermeira, ela é um depósito dos problemas dos outros: “As pessoas vomitam os problemas em cima da gente de uma forma muito fácil”. Por ficar tanto tempo ao lado dos pacientes, o profissional de enfermagem é treinado para cuidar do doente. Fato que nem sempre acontece, como nos casos de preconceito. Há alguns anos, um dos grandes tabus era ser mãe solteira.

Ter um filho sem estar com o marido ao lado podia significar ser mal tratada dentro dos hospitais. Carla não concorda com a discriminação, mas admite que isso é comum, “infelizmente”. O preconceito atinge questões como raça, credo e sexo. “As prostitutas são as maiores vítimas da negligência de quem não respeita as diferenças”. O mais comum é ouvir profissionais dizendo: “Ah, merece sofrer mesmo, é prostituta!”.

Há também os presos e sentenciados: “Se um preso ou prostituta está para morrer, os profissionais os deixam sozinhos, ninguém fica perto”.

Por causa da religião, que não permite a transfusão de sangue, a discriminação atinge as Testemunhas de Jeová. Se uma mãe não permite a transfusão de sangue no filho, ela é “crucificada” pela equipe. Alguns tentam liminar judicial para poder obrigar a criança a receber sangue. Carla é categórica: “Eu sou radicalmente contra. Isso é discriminação, pois é o que a mãe quer, é o que ela acredita. Na crença dela, ela está protegendo e sendo a melhor mãe do mundo como eu acho que estou sendo a melhor mãe do mundo na hora que eu autorizo uma transfusão para o meu filho. Quem sou eu para julgar?”. Antes de qualquer situação, Carla enxerga no paciente um ser humano que precisa de cuidados e respeito.

Não é possível aliviar o sofrimento de ninguém, mas é possível ser solidário. Para diminuir o padecimento de um doente, padecer junto não é o melhor caminho, basta compreender: “não apenas com palavras de conforto ou tapinhas nas costas ‘ah, fica tranqüilo, tudo vai dar certo’, isso é uma puta sacanagem! É uma sacanagem que não tem tamanho”. Carla compreende a dor, escuta e deixa a pessoa falar. O mais apropriado é ficar disponível e dizer: “pode contar comigo”.

A piedade é um sentimento requisitado por pessoas doentes e seus familiares, mas ter dó do paciente é um comportamento nocivo. A primeira vez que Carla percebeu este tipo de atitude foi quando, com pouco mais de dois anos de experiência como enfermeira, cuidava de uma senhora que teve um Acidente Vascular Cerebral (derrame).

A senhora, que tinha 70 e poucos anos, estava hospedada na casa da filha: “uma mulher casada, com filhos e marido”. Um dia, a filha da idosa inválida acusou Carla de ser uma profissional fria. Carla é taxativa em sua afirmação: “Eu não sei sentir dó de uma pessoa. A filha da senhora inválida não sabia lidar com aquela situação e queria que eu passasse a mão na cabeça dela e dissesse ‘ah, coitada, olha só, sua mãe estragou sua vida’. Eu não disse nada”.

Carla trata os pacientes em coma da mesma forma que cuida de alguém que está consciente. Cumprimenta, fala da aparência, conversa e pede licença para pegar no corpo: “Tem que ter o respeito à privacidade, ao corpo da pessoa que a gente está cuidando, esteja ela consciente ou não. Eu digo sempre ao paciente o que vou fazer, tipo ‘agora vou dobrar sua perna, vou esticar seu braço’...”. A atitude é explicada por ela com base em estudos que comprovam que o uso da linguagem não está separado da técnica: “Como eu acredito que o inconsciente está gravando tudo, desde a fecundação até a morte, então eu acho que está valendo. Não importa se está em coma ou não. A área da neurologia tem muito a descobrir. Eu não vou correr o risco de desrespeitar uma pessoa, mesmo ela estando em coma”.

O Brasil é um país de muitas cores e faces, por isso, nenhuma crença pode declinar a aceitação do sincretismo religioso. Para Carla Fiori, brasileira, não é diferente. De educação cristã e orientação espírita, ela cai em contradição e não acredita que somos a imagem e semelhança de Deus: “A tentativa de tornar Deus um humanóide seria fruto da falta de imaginação do ser humano”.

Para Carla, Deus é a energia criadora do universo que está ligada com as leis da física e da química, não uma entidade com consciência que manipula os acontecimentos. Às vezes, ela acredita na vida após a morte, às vezes, não: “É muito confuso, acho que depois nos tornamos energia”.

O pai dela morreu há dois anos e a mãe há seis. Mesmo assim, quando sente saudades da presença materna, conversa e pede ajuda. Desta maneira, ela faz exatamente aquilo que acha que não existe. Se a mãe dela morreu, o corpo está decomposto e a energia presente no universo: “É uma contradição absurda, mas eu estou bem com a minha contradição”.

Carla faz de conta que conversa com os pais para aliviar a saudade pois, como ela insiste em dizer: “Saudade dói, saudade dói”. Lidar com a dor de forma madura, não lamentar, entender a morte como um presente e não como uma punição é o que ela faz: “O problema da morte é para quem fica, não para quem morre, então, quando sou eu quem fica, como no caso de pessoas que eu tenho envolvimento emocional, eu sinto saudades”.

Durante a entrevista, Carla salientou a diferença entre a percepção que seus dois filhos têm da morte. Thiago tem 17 anos de idade e convive com o sofrimento alheio de forma tranqüila. Aos oito, no velório do avô paterno, Thiago quis tocar o corpo dele com todas as mãos e estranhou a ausência de sapatos no ente querido. Atualmente ele diz que, quando tiver que ser enterrado, quer estar vestido de bermuda e sem sapatos, como aconteceu com seu avô, que pôde contar com a presença do neto ao lado da cama nos últimos dias de vida.

A filha mais velha da enfermeira Carla, Ana Paula, tem conhecimento sobre os primeiros socorros e sobre os procedimentos que devem ser feitos em caso de acidentes, mas tem pavor do que a mãe precisa ver no dia-a-dia: “Não gosto de sangue, o sangue significa vida, então, se você está perdendo sangue, você está perdendo sua vida. Eu não sou Deus, então eu fico apavorada. Eu queria pegar uma pá, colocar o sangue para dentro e fechar”.

Ana Paula quer se formar em estatística. Gosta de números, pesquisas e porcentagens. Evita ficar perto de pessoas doentes e as procura quando estão melhores: “Eu vejo a pessoa acabada e não gosto de gente que reclama, não tenho paciência”. Ana Paula tem um jeito jovem e alegre que contagia, fala rápido e usa muitas gírias. Estuda, tem amigos e não gosta de agulhas. Beber antes de dirigir? Nem pensar! A filha de Carla sabe que é preciso tomar cuidado para não morrer: “A gente cresce sabendo que o cachorrinho morre, o passarinho morre, seu avô morre, seus pais vão morrer. Você vai sendo preparada para isso e um dia você vai morrer, seus filhos e netos vão te enterrar. Não paro e penso ‘vou morrer’, se eu morrer eu morri, e daí? Vou viver o hoje e também pensar no meu futuro”.

Capítulo II

A hora da misericórdia


"Pelos quatro cantos da terra, a morte, a discórdia, a ganância e a guerra. E a guerra"
Carta aos missionários - C. Galvão, M. Hayena, N. Nunes


Jyl continua agitado. À noite ele teria que fazer uma prova na faculdade. Cadernos em mãos. Corpo na sala. Desconcentrado da tarefa que tinha pela frente, a audição despertou para o barulho que vinha do rádio. A mãe de Jyl, Constância, ouvia um programa religioso com atenção. Era a Hora da Misericórdia, três da tarde do dia 20 de maio de 1994.

Aquele era o momento do dia para se concentrar com fé e pedir uma graça, explica Constância para Jyl. Ele se curva para frente com o caderno no colo e faz seu pedido em silêncio.

Agosto de 2003: ao trazer da memória o último dia de Jyl, Constância chora. Pede um lenço para a filha Simone, professora de artes marciais e dona de uma doçura sublime. Ela cuida dos detalhes com a mãe que acabara de sair do hospital. Constância fez a segunda cirurgia no coração. A primeira foi há 30 anos.

Na sala, o televisor está envolto de porta-retratos. Jyl está entre eles. Foto de rosto. Na parede, um quadro com a figura de Jesus Cristo: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”.

Religião e fé ajudam a diminuir o sofrimento. Para Simone, que acredita em Deus e vai à missa, a crença foi positiva quando precisou enfrentar a dor de perder um irmão. O padre de uma igreja de Rio Claro a ajudou com palavras de conforto e fé. Simone estava deprimida. Na religião e na igreja ela encontrou acalento.

Enquanto alguns buscam a existência de Deus, outros preferem encontrar respostas no conhecimento empírico. Não por desrespeito às religiões, mas por ter uma personalidade contestadora como a do jornalista ateu José Arbex Jr.

Arbex escreveu mais de 25 livros e presenciou fatos históricos que não deixam dúvidas sobre sua experiência. Ele era correspondente internacional da Folha de São Paulo quando o muro de Berlim foi ao chão. Além de ter visto a história do mundo acontecer, Arbex tem o privilégio de poder contar como foi entrevistar personalidades como Mikhail Gorbachov, Ulisses Guimarães e Peter Gabriel.

Jornalista, escritor, professor e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), Arbex se entregou à profissão de jornalista e enfrentou situações de extremo perigo, como estar dentro de um avião que era alvo de míssil. Hoje, aos 47 anos, o taurino com ascendente em capricórnio é editor da revista Caros Amigos, membro do Conselho Editorial do Jornal Brasil de Fato e professor da Puc em São Paulo.

Na tentativa de entrevistar Arbex, o primeiro contato para a entrevista foi feito por e-mail em um sábado de carnaval. A questão era a morte. O retorno veio quase que imediato. Nascia, então, a fonte que mais inspirou a continuação deste livro-reportagem.

Em letras minúsculas, a resposta explicava o mínimo: “Presenciei várias vezes a morte, de vários pontos de vista. No Paraguai, fui ameaçado de morte pelo ditador Stroessner (1986). No Haiti, estava em uma barricada quando um manifestante foi atingido por balas de metralhadora ao meu lado, podia ter sido eu (1986). No Afeganistão, viajei em avião soviético que era alvo de mísseis sting de muçulmanos (1988). Na Armênia, presenciei milhares de corpos após um terrível terremoto. Em Pequim, convivi por 40 dias com estudantes na Praça da Paz Celestial, muitos dos quais massacrados em 04 de junho de 1989. Na Romênia, cobri os resquícios dos combates que derrubaram Nicolau Ceaucescu. Ainda vi mães rezando por seus filhos diante de velas acesas em Bucareste (1989). Na Palestina, fui várias vezes medido por soldados portando fuzis, além de ter permanecido sob cerco de tanques de guerra em um hospital, em Ramallah (2002), fora acidentes pessoais, como dois capotamentos. Mas isso, não sei se conta...”.

Nos dois acidentes pessoais, ninguém morreu, ninguém se machucou. O carro ficou literalmente pendurado em uma árvore, à beira de um precipício de uns 50 metros. Arbex nunca achou que ia morrer e diz que tem o corpo fechado: “Vou morrer aos 94 anos, em 2051. Em 2050 vou dar minha última palestra para uma moçada adolescente e contar como foi a queda do muro de Berlim”.

A afirmação não é à toa. Nunca foi internado nem passou por cirurgias. Evita médicos alopatas e, quando necessário, procura se tratar com homeopatia ou acupuntura: “Acho que a medicina está equivocada, ela parte de uma divisão entre carne e espírito. Eu não acho que existe essa divisão. A doença não é uma manifestação de um órgão doente, a doença é a interrupção da energia vital. A doença mais grave que eu tive foi gripe”.

A juventude e a disposição do jornalista advêm do entusiasmo que sente pela vida: “Eu só vou ficar doente no dia em que eu perder o entusiasmo. Não me sinto com 47 anos, me sinto com 20. O dia em que eu fizer algo sem entusiasmo, vou considerar que estou mal. Aí eu acho que vou estar perto da morte”.

Apesar da resistência em falar da vida pessoal, Arbex foi se deixando conhecer. Até que a persistência deu lugar à realidade. Estava frente-a-frente com o jornalista de guerra que já entrevistou com exclusividade personalidades como Iasser Arafat e François Houtart. Aqui ele fala da morte, vida e terapia.

A risada é contagiante, quase hipnótica. Arbex não bebe e não se droga, gosta de estar sóbrio. Apesar da coragem explícita em sua profissão, já sentiu medo de morrer quando, no Afeganistão, o avião em que viajava era alvo de míssil. Ele achou que seria o fim. Mesmo tenso, conseguiu dormir enquanto os outros bebiam. Estava no avião com mais 20 correspondentes. A coragem, invejável para qualquer profissional ávido por notícias, existe para Arbex quando ele sente que é dono dos próprios passos: “O negocio é assim, se você está no chão, na barricada, você pula, rola, sai correndo, faz qualquer coisa, mas dentro do avião não. No avião você depende do piloto”.

Ao desafiar poderes, o jornalista foi capaz de trazer à tona notícias de várias partes do mundo. No Haiti, mesmo quando um manifestante foi metralhado ao seu lado, Arbex não desistiu. Na época, toda forma de comunicação estava fechada no país: “Fui para a central do correio do Haiti, o telex. Na porta tinha um sentinela armado com um fuzil e que ficava andando de lá para cá, na porta. Eu esperei ele me dar as costas, entrei na central do telex e comecei a escrever a notícia”. Se fosse pego, seria assassinado. Mas sentiu o corpo fechado:

“Eu não sei, é muito estranho o que acontece. Eu fico com o sangue frio, totalmente tranqüilo”. Arbex escreveu a reportagem sem rascunho. O texto saiu perfeito. Ele é capaz de escrever um livro em três semanas. Entre tantas notícias, Arbex se comove: “A hora que mais me comovi foi quando conversei, em 2001, com as crianças na Palestina. Foi quase insuportável ver crianças sendo assassinadas por um exército ocupante e não ter o que dizer a elas. É barbárie humana, não é terremoto, é gente provocando mortes”.

Quando presenciou o terremoto que matou 10 mil pessoas na Armênia, Arbex constatou de perto a força da natureza: “Ali eu senti a impotência da espécie humana, tão vulnerável e frágil. A vida é um acaso”.

Ele admite que fez sua carreira cobrindo jornalisticamente o sofrimento dos outros. Hoje, Arbex não se sente à vontade para falar da dor alheia: “É um conflito ético que surgiu na Palestina”. Ao desvendar as mazelas alheias, ele acreditava que fazia bem à comunidade.

Depois de analisar os fatos, Arbex acredita que falar da morte dos outros é uma espécie de violação da intimidade. Demorou algum tempo para chegar a essa conclusão.

Em 1999, houve um simpósio na Puc chamado O Estrangeiro. No encontro, Arbex pôde ouvir alguns psicanalistas. Uma delas, em particular, fez a diferença na vida do jornalista que destrinchava publicamente o conflito na Iugoslávia e a guerra civil na Bósnia.

Depois de todo o debate, a psicanalista iugoslava disse ao jornalista brasileiro: “Eu sei de tudo isso o que você falou, só que eu não falo, eu fico quieta porque eu acho muito violento falar da morte de outras pessoas”. Arbex não entendeu e tentou argumentar: “Se ela não fala, como as pessoas vão saber o que acontece?”. Na época, ele julgou aquele silêncio como algo idiota, mas em 2001 ele entendeu: “A morte é um sentimento intransponível. É como se, ao falar da morte, o mistério que ela representa fosse banalizado. Explicar o próprio fim não é problema porque você é responsável pelo seu mistério, mas não tem o direito de banalizar o direito do outro”.

O receio de Arbex é que, quando alguém expõe a morte alheia sem o devido respeito, tudo se torna unicamente uma estatística.

Arbex fez terapia durante uma década e parou por acreditar que está pronto para elaborar internamente o que foi analisado. No início, fazer terapia representava uma fraqueza, mas depois de quatro anos de análise, o preconceito deu lugar ao entendimento das próprias aflições.

Foi em 1990, quando ele estava em Paris, que percebeu que precisava de ajuda. Arbex estava na França para cobrir uma conferência européia: “Comecei a me sentir muito mal, solitário, aí eu pensei comigo mesmo: ‘Oh cidadão, é o seguinte: você estava mal e Nova Iorque, você culpou o capitalismo. Você ficou mal em Moscou, você culpou o socialismo. Agora você está mal em Paris, qual o seu problema? Você vai culpar quem? Os Campos Elíseos?’ Aí eu encarei que eu tinha um problema”.

Ele estava vivendo um mundo absurdamente intenso no ponto de vista das transformações políticas, revoluções, morte e luta. Com a carreira de jornalista em ascensão, ele percebeu que havia uma discrepância: “Minha vida virou um vazio preenchido por coisas que não eram pessoais, eram acontecimentos, então eu tive uma vida de acontecimentos. Ninguém vive desse jeito. Aí eu achei que estava na hora de procurar a psicanálise”.

Um dos problemas do jornalismo é que, para Arbex, não houve diferença entre vida profissional e pessoal: “Em tese, o jornalista não deve se envolver emocionalmente com os fatos e tem que ser objetivo. Eu nunca consegui fazer isso, eu me envolvo emocionalmente e manifesto minha posição. Isso produziu um desgaste psicológico muito grande. Eu fico puto, participo, vou para as manifestações. No final de tanta coisa aconteceu um desgaste emocional que até hoje eu não avalio direito”.

O assunto sobre morte foi discutido na terapia porque Arbex percebeu que, enquanto era relativamente fácil falar do fim da vida dos outros, era muito difícil falar da morte de alguma coisa dentro dele: “A morte na minha vida era uma coisa difícil. Então eu estava sendo hipócrita. Como é que eu falo da morte de todo mundo e não das coisas que têm que morrer comigo? E as coisas que eu tenho que matar dentro de mim? Como é que eu vou lidar com isso? Na psicanálise”.

Capítulo III

Um Nove Dois


"Meu anjo, eu sei que é duro esperar, no chão, tudo terminar. Pois, continuar vivo já não é mais uma opção. Fácil é virar pó, difícil é a lição"
Morto - John Ulhoa


Sexta-feira era dia de fazer faxina na casa, mas naquela tarde Simone estava enrolada com o serviço. Omero, irmão mais novo de Jyl, costumava contar piadas diariamente antes de ir para a escola.

Jyl, já pronto para pegar o ônibus que o levaria para a faculdade, começou a fazer graça. Eles adoravam rir. Um pouco antes de Jyl sair de casa, Constância pediu para o filho tirar o tênis. Ela lavaria o calçado para que ele pudesse usá-lo limpo no final de semana.

Foi então que Jyl respondeu: “Xi mãe, você vai ver como vai voltar esse tênis hoje”. Passou por Simone e se despediu rapidamente: “Ele saiu quase sem ninguém ver, eu disse para ele: ‘vai com Deus’, e ele foi”.

Logo depois que Omero e Jyl saíram, Simone e Constância foram à igreja rezar o terço. Entre sete e sete e meia da noite, na “Hora dos Mistérios”, Simone passou mal, perdeu o fôlego e “a vista escureceu”. Constância apenas sentiu necessidade de rezar sem parar. Em alguns minutos, Simone estava bem novamente.

Depois de rezar, mãe e filha vão para casa preparar o jantar. É nesta situação que Fábio aparece. O sócio de Jyl trazia a notícia: “Aconteceu um acidente com o ônibus do Odajyl e parece que ele está bem na Santa Casa, vamos lá que eu levo vocês”.

No caminho para o hospital, Simone acredita que o irmão vai sobreviver. Com a confusão, foi difícil entrar no hospital, mas Simone consegue. Desce as escadarias e vê Jyl passando deitado na maca. Ele estava respirando, mas inconsciente. Não tinha piche no corpo dele. As outras vítimas do acidente se misturaram no material asfáltico do caminhão-tanque que bateu no ônibus. Jyl estava inteiro, com o peito inchado, a cabeça raspada e cheia de cortes.

Ver o irmão em estado grave depois de sofrer um acidente é uma lembrança sem possibilidade de descrição. Por mais que haja maneiras de dizer como foi, apenas quem viveu uma situação semelhante pode saber o real significado da dor. É em momentos como esse que muitos profissionais precisam lidar com o sofrimento alheio diariamente.

São irmãos, pais e mães de pessoas desconhecidas que precisam de ajuda. A tarefa? Salvar vidas e amenizar dores. É assim que trabalham todos os dias os médicos, enfermeiros e motoristas do Sistema de Atendimento Médico de Urgência de Campinas (Samu).

Sala pequena, móveis antigos, médicos, enfermeiros, atendentes, ocorrências paradas por falta de ambulância e um homem tentando consertar algo a marretadas. Assim estava a sala de atendimento 192 do Samu em uma tarde de agosto de 2003.

Os atendentes recebem os telefonemas, coletam as informações necessárias como endereço, gravidade da ocorrência e, dependendo do caso, acionam uma equipe para sair com a ambulância UTI.

As constantes chamadas podem trazer notícias como parada cardíaca, ferimento por arma de fogo, arma branca, acidentes múltiplos ou desabamentos. Durante o dia, quatro médicos ficam de plantão, à noite são três.

O Samu recebe 150 chamadas diariamente: são pessoas que pedem por socorro. Das 11 ambulâncias disponíveis no serviço, cinco estão paradas. As ocorrências não atendidas se acumulam em cima da mesa que fica ao lado de um computador. Cada uma delas é separada de acordo com uma classificação pré-estabelecida, o maior maço de papéis à espera de atendimento aponta casos de alcoolismo.

O primeiro a ser entrevistado na tarde ensolarada de agosto foi o coordenador médico José Roberto Hansen. O homem, que hoje trabalha na administração do Samu, explica que o dia-a-dia de atender urgência e emergência é mais emocionante. Com a missão de socorrer pessoas há mais de 13 anos, Hansen sabe que, por conta de alguns segundos, uma vida pode se perder.

Nas emergências, a atenção e a pressa precisam ser constantes. Das tantas histórias vividas pelo médico, que se formou no Rio de Janeiro, a mais presente na memória é a de uma criança que caiu em um poço: “Eu tive que entrar dentro do buraco sem esperar bombeiro porque não dava tempo. Nós temos treinamento para resgate em altura e resgate em poço. Desci e peguei a criança no poço de uns 15 metros, ela quebrou só a clavícula e luxou o ombro”.

Em casos de óbito, Hansen fica emocionado quando a vítima é semelhante a alguém que ele conhece: “Deparar-se com uma situação de um falecido que parece um parente seu, um senhor que parece seu pai, isso é difícil. Eu morava no Rio de Janeiro e, quando isso acontecia, eu ligava em casa para perguntar: ‘E aí pai, tudo bem com você? E a semana, foi boa? Não está sentindo nada?’ Dava muito medo de acontecer com a minha família também”.

Nas situações delicadas em que um médico precisa se aproximar da família de uma vítima, a atitude varia de profissional para profissional. Alguns fazem uma prece para que todos possam se acalmar, outros explicam o que aconteceu, e existem aqueles que não fazem nada.

Hansen busca esclarecer os familiares: “Explico qual o motivo da morte e a chance de ter feito algo. Tento acalmar a família”. Para ele, acidentes na rua são emocionalmente mais fáceis de lidar pois, na maioria dos casos, a família não está presente: “Quando é trauma, a situação é ruim porque você vê um corpo dilacerado na pista, isso choca. Você sabe que há minutos era uma pessoa que tentava ir para casa, dar comida para os filhos. Daí a pouco você vê o corpo da pessoa destroçado em uma pista. Acabou, não é nada, aquilo não virou nada”.

Acontecimentos trágicos se acumulam na mente de quem trabalha na área da saúde. No início da profissão, Hansen contava para a esposa o que presenciava no dia-a-dia. Com a experiência, ele percebeu que é melhor não falar do assunto: “Às vezes ela ficava chocada e falava ‘ai credo, não quero nem saber’. Aí percebi que é chato mesmo. A vida já é cheia de tristeza, não é fácil, não tem muito com quem dividir”.

No plantão, os profissionais costumam falar sobre sentimentos para os colegas de trabalho. Quando a ocorrência é grave, todos conversam entre si: “Na verdade é um extravasamento emocional”. No natal de 2002, a equipe se preparava para um culto ecumênico quando recebeu uma chamada urgente. Chovia muito e uma criança tinha sido levada pela enxurrada: “Eles até pegaram na mão da criança, mas ela entrou na valeta e morreu”. Todos ficaram abalados e voltaram chorando porque não havia o que fazer.

Para melhorar o estado emocional de quem tem uma atividade desgastante, há mais de um ano os profissionais do Samu têm à disposição uma psicóloga. Quase ninguém faz a terapia em grupo proposta pelo serviço. Hansen admite que o ideal seria a criação de um serviço de psicologia presente 24 horas por dia: “Mas a gente não tem essa possibilidade”.

Depois de muito planejamento da Secretaria do Estado, em 1996 o Samu foi inaugurado. Desde então, alguns profissionais não conseguiram trabalhar no local por mais de duas semanas. O motivo? A pressão emocional diária que é fazer parte de um serviço público de emergência.

Na sala, onde ficam os médicos à espera de chamados de socorro, está Eduardo Stéfano. De óculos e bom humor, ele explica as dificuldades de atuar no Samu. As tentativas de suicídio são as ocorrências mais trágicas na opinião dele, seja com remédios, enforcamento ou cortes no punho. O mais dramático foi um enforcamento no qual a chamada acusava cheiro de gás de cozinha. A equipe chegou e, por sentir cheiro de gás, chamou o Corpo de Bombeiros.

A porta foi arrombada. Dentro do local estava um homem morto: “Era um quartinho pequeno, o gás estava vazando, havia uma ‘senhora’ faca embaixo do travesseiro e o fio de telefone enrolado no pescoço. Ele deve ter sofrido muito porque errou o cálculo e ficou pendurado na ponta do pé. Comecei a pensar no motivo para ele ter feito aquilo. Pelo que ouvi, ele estava jurado de morte por causa de drogas. Antes de ser assassinado, se matou”.

A primeira reação de Stéfano foi retirar o homem, suspenso pelo fio de telefone, do local do enforcamento. O médico sabe que o ideal é deixar o corpo pendurado até a polícia técnica chegar. Naquela situação trágica, o motivo para a atitude de Stéfano foi a necessidade de acabar com a cena trágica.

Para dividir histórias e angústias, Stéfano conta com a ajuda da esposa, que é enfermeira na Unicamp: “Nunca fiz terapia, eu trabalho bem o que vejo, não fico pensando nem sonhando com as tragédias. Até poderia fazer terapia, mas para resolver outros problemas, não para aprender a lidar com a morte no dia-a-dia. Se alguém está na chuva, é para se molhar”.

Ele não se tornou médico por status ou porque “papai” queria. O pai de Stéfano, médico, deixava explícito que não fazia questão de ver alguém da família seguir a mesma profissão, mas Stéfano realmente queria ser médico: “Eu já trabalhei na área administrativa, já fui secretário de saúde, já fui superintendente de Santa Casa, mas a política é terrível, dá nojo. É mais angustiante a política do que a morte”.

Ao lado de Stéfano está o médico Alexandre Chicrala Filho, de atitude discreta e palavras contidas, ele também faz parte da equipe do Samu. Com o olhar sério, ele conta que não sente a morte como algo normal, mas entende a obviedade de que, na área da saúde, o profissional vai ter que enfrentar a rotina dos óbitos: “Normal não é, acho que nunca é para ninguém, quem fala que é natural está mentindo. Mas a gente tem outra maneira de entender isso. Às vezes as pessoas ligam aqui desesperadas quando alguém morre aos 95 anos. Puxa, isso é mais que natural”. Chicrala acredita em Deus, mas não na vida depois da morte: “Morreu, acabou”.

Enquanto os médicos conversam, o motorista de ambulância observa. Católico, Ronald Fernando Fortunato precisa dirigir em alta velocidade no trânsito de Campinas e convive com tragédias e perigos.

Uma vez, Fortunato foi buscar um homem baleado na favela. O autor do tiro ainda estava no local para garantir a morte vítima: “Ele subiu na ambulância e tentou balear o paciente de novo já na maca dentro da viatura”. Em outra ocasião, moradores de um bairro apedrejaram a ambulância, que demorou a chegar no local.

Fortunato não esconde que o que mais vê é gente morta: “Virou rotina”. Só não é rotina quando o óbito é de criança: “A gente fica morrendo de dó, os maus tratos, a condição social, isso que pesa um pouco”. Ele não faz terapia e confirma que poucas pessoas conversam com a psicóloga contratada para cuidar dos profissionais do Samu: “Acho que é falta de tempo, muita gente tem outros empregos”.

Na tarde ensolarada de agosto de 2003, algumas enfermeiras estavam sentadas em um banco de madeira no pátio do Samu. Protegidas pela sombra, Lely Mansur e Milena Pietro Bom Paiva conversavam.

Lely trabalha há 15 anos em urgência e emergência. Milena é estudante do primeiro ano de enfermagem da Universidade Paulista (UNIP). As duas demonstram paixão pelo que fazem e conservam no olhar algo que parece materno. As atitudes são calmas e a entrevista é fácil.

Em geral, as mulheres gostam de falar mais do que os homens. Contam histórias, falam de sentimentos e emoções. Lely escolheu ser enfermeira quando ainda era criança. Gosta de ajudar as pessoas e segue a profissão como um objetivo de vida: “Sou uma enfermeira felicíssima, adoro o que eu faço, sou uma pessoa privilegiada, encontrei uma profissão que realmente me completa”.

Cristã, Lely explica o que pensa sobre a vida depois da morte: “Você lembra dos átomos? Negativo e positivo? Quanto melhor você está espiritualmente, mais perto do núcleo você fica. Quanto mais energias negativas, chega uma hora que você dissipa. Diferente, não é?”.

Milena espera a vez de falar, calada e atenta aos depoimentos da colega. Começa a história pela infância, quando ouvia a pergunta fatídica dos pais: “O que você vai ser quando crescer?”. Até os sete anos de idade, Milena desejava ser bailarina. De uma hora para outra, sem explicação ou dúvida, decidiu ser enfermeira. Na família dela ninguém trabalha na área da saúde e o espanto foi inevitável. “Por que enfermeira?”, perguntaram. E ela, com toda convicção: “Eu quero cuidar dos outros, eu acho bonito ficar lá, dar apoio. Agora vou ter que sair”.

Neste momento acontece uma chamada urgente para socorrer uma PCR. Milena e Lely saem às pressas, sorrindo e com ternura no olhar. Explicam que PCR é parada cardiorespiratória. Não é possível acompanhar a ambulância. Apesar do convite das enfermeiras e do motorista, o coordenador médico é taxativo: “Se algo acontecer com você, eu sou o responsável, eles vão atravessar a cidade em alta velocidade, sempre existe o perigo”. A ambulância sai do pátio fazendo barulho. Enfermeiras, médico e motorista acenam. Vão salvar vidas.

Capítulo IV

Notícia ruim


"Fui até o rapaz que ainda vivia. E vendo ele morrer, sem saber o que fazer, segurei sua mão fria" Um ponto oito - John Ulhoa


Na noite de 20 de maio de 1994, Jyl sofreu politraumatismo no acidente que envolveu um ônibus e um caminhão-tanque. Ele foi uma das únicas vítimas fatais a sair inteira do acidente. Uma caminhonete, que passava pelo local, o socorreu antes da chegada qualquer resgate especializado.

Enquanto tentavam salvar a vida de Jyl na Santa Casa de Rio Claro, o jornalista Ivan Castanho se preparava para ir a um jantar árabe no clube da cidade, o Grupo Ginástico. Ele estava em casa quando recebeu uma ligação com a notícia do acidente na SP-127.

Em 1994, celular era objeto raro. Castanho saiu de casa em direção ao clube. Um colega de trabalho foi até a festa avisá-lo pessoalmente: “Teve um acidente grave com estudante. Coisa grave. Vários mortos”.

Na entrada do clube, Castanho estava com a esposa e mais um casal, na época o dono do Jornal de Rio Claro, João Ragghiante. Castanho deixou os três na festa e foi para o local do acidente: “O jornalismo corre na veia. Já tinha a informação de que era ônibus de estudante de Rio Claro. Fui na louca, sozinho. Cheguei no jornal e o fotógrafo já tinha ido cobrir o fato. Foi difícil chegar até o local da tragédia. Estava tudo congestionado e escuro. Deixei o carro distante uns 500 metros do acidente. Com carro particular é complicado, se é de imprensa o pessoal abre caminho, mas até justificar...”.

Enquanto caminhava, ao chegar perto do acidente, Castanho sentiu “um negócio grudando no pé”. Ele não sabia o que era e quando viu, era piche: “Marcou muito porque eu estava de sapato novo. Na hora, a única coisa que veio na cabeça foi o sapato novo. Depois disso, quando cheguei perto do ônibus, foi um horror”.

Não era a primeira vez que Castanho via uma tragédia de perto. Cerca de dois anos antes do acidente que matou Jyl e mais 18 pessoas, o jornalista cobriu um acidente com sete vítimas fatais na SP-127: “Cheguei junto com o resgate. Morreu a família inteira, só não morreu o motorista do caminhão. Os sete eram da família Vedovelo. Tinha criança dentro do carro. Estavam indo para um casamento em Piracicaba ou Capivari, não lembro mais. No caminho para a festa, bateram de frente com um caminhão. Não dava para distinguir do que estavam vestidos. Para você ter um idéia, eram sete corpos. Não sei você já viu o tamanho do caixão de zinco que funerária tem para esse tipo de coisa, que é um pouco maior e mais alto do que a gente costuma ver em velório. Os sete corpos couberam em um único caixão. Não tinha como distinguir, era preciso levar para um especialista tentar fazer a separação”.

Depois do resgate dos corpos, quando levantaram o veículo acidentado, acharam uma cabeça embaixo do carro: “Até onde sei, o problema foi com a mecânica do carro, não foi culpa do caminhão. O caminhão vinha na descida, o carro não estava ultrapassando e não deu para identificar o problema por causa do estado em que o veículo ficou. Ou foi a direção, ou furou o pneu. Você imagina um caminhão no embalo da descida...”.

Já no acidente de 20 e maio de 1994, Castanho encontrou o fotógrafo do Jornal de Rio Claro trabalhando na escuridão. Entre os corpos, o jornalista conta que o interessante era o cheiro: “O cheiro não era ruim, mas dava para sentir o cheiro da morte ali, não dá para explicar. Fiquei arrepiado de ver aquilo. Eu, na realidade, não conhecia ninguém. Só sabia que eram estudantes. Apenas uma sobrevivente eu conhecia de vista”.

O fato de não conhecer as vítimas facilita o trabalho de qualquer profissional, mas Castanho não deixou de ficar sensibilizado com a situação: “A cena chocante foi quando eu me dirigi ao Instituto Médico Legal (IML). Não tinha mais espaço para colocar os corpos. Foram colocados no chão, um ao lado do outro. Ali foram feitos os reconhecimentos e as fotos. Publicar ou não? Tinha gente com metade do rosto, sem o queixo, sem a tampa da cabeça, sem o braço, sem a perna, gente cortada o meio. Tinha de tudo. Interessante foi o silêncio no IML. Apesar dos familiares chegarem, havia silêncio e daí a pouco alguém começava a chorar”.

Depois do IML, Castanho seguiu para a redação do Jornal de Rio Claro, onde trabalhou durante quase 20 anos. Foi revelar as fotos e escrever a matéria: “Era tipografia, tinha que montar no chumbo. Passava para o linotipista. E o jornal saiu... mais uma tragédia”.

Escrita a matéria, Castanho voltou para o Grupo Ginástico, onde acontecia o jantar árabe: “Minha esposa estava lá, devia ser mais de meia-noite”. O pessoal já começava a ir embora do clube. Por coincidência, a primeira pessoa que o jornalista encontrou foi Ragghiante, dono do Jornal de Rio Claro, conversando com o Aldo Demarchi, na época vice-prefeito da cidade: “O Aldo perguntou para mim como tinha sido e eu disse que era indescritível”.

No dia seguinte, Castanho buscou, com as famílias, as fotos das vítimas fatais para publicação no Jornal de Rio Claro. Das 19 vítimas, ele conseguiu 10 fotos: “Só nós do Jornal de Rio Claro íamos publicar, aí o repórter do Jornal Cidade me ligou e pediu as fotos. Depois, muita gente me questionou por eu ter cedido o material para o Jornal Cidade ao invés de publicar sozinho. Por que eu cedi? Primeiro, naquele momento eu tinha consciência de que o Jornal de Rio Claro não era o de maior circulação. A impressão do Jornal Cidade naquela época já era off set, então não achei justo colocar o material só no jornal que eu trabalhava. Muita gente não sabia quem tinha morrido. Quase todos eram de Rio Claro. Eu achava que, quanto mais a imprensa divulgasse quem eram as pessoas, mais informação. Não era sensacionalismo, era informação”.

Na vida pessoal, Castanho às vezes freqüenta a Congregação Cristã do Brasil. A esposa dele é batizada, mas ele não: “Vou lá para ouvir uma palavra e tal. Acredito em Deus, ou em uma força que colocaram o nome de Deus. Acredito nessa força e quero continuar acreditando. Eu acho que estamos aqui por algum motivo. Temos que acreditar. Tudo na vida precisa ter um objetivo. Não que a morte seja o objetivo, mas é o destino e temos que aceitar. Temos que ter uma vida sem fazer mal às pessoas. Ninguém é perfeito, todo mundo tem seus pecados, mas é preciso tentar ser o mais honesto consigo mesmo. É importante a pessoa ter uma crença, uma doutrina. Até o ateu tem a doutrina de que ele é ateu, não simplesmente vive por viver. Eu não posso matar, roubar, não é certo... Se eu tenho medo da morte? Eu não tenho medo da morte, eu tenho pavor”.

O jornalista Diógenes Pasqualini é assessor de imprensa do deputado estadual Aldo Demarchi juntamente com Ivan Castanho. Em 1994, Pasqualini era estudante de jornalismo na Unimep e repórter do Jornal de Rio Claro.

Todos os dias, cerca de nove ônibus da Companhia Cidade Azul saíam em direção à Unimep. O ônibus de Pasqualini foi um dos três primeiros que seguiram para Piracicaba. O veículo em que Jyl estava era o quarto ônibus: “Era uma sexta-feira, dia 20 de maio, e a maioria dos ônibus estava com menos alunos que o habitual. Você sabe, sexta-feira, moçada jovem, cerveja esperando no bar. A maioria enforcava aula. Isso justifica o número de mortos. Se o carro estivesse lotado, com 51 passageiros, a tragédia poderia ter sido bem maior. No dia, creio que o número de pessoas no ônibus não passava de 30”.

Na Universidade, Pasqualini cumpria apenas um crédito. Era final de curso e o professor solicitou que a classe fizesse uma redação. Tema livre, um texto de 20 linhas, batido a máquina em lauda padrão de jornal: “Lembro-me que, no momento em que recebi a notícia do acidente, eu escrevia algo sobre a morte. É curioso notar que, quando um amigo meu disse ‘cara, aconteceu um acidente com um dos ônibus da Viação Cidade Azul’, nesse momento eu escrevia exatamente ‘Ela foi embora e morreu...’. Não me lembro do conteúdo, mas essa frase me incomodou por muitos anos. Seria um pressentimento? Uma intuição?”.

A esposa de Pasqualini, na época noiva, viajava em um dos nove ônibus também. Ele estudava no campus Centro e ela no campus Taquaral: “Para quem não conhece a estrutura física da Unimep, estávamos distante um do outro uns oito quilômetros”.
Depois da notícia inicial, saíram todos em busca de informações: “Tentamos por telefone, mas as ligações eram tantas que acabou congestionando as linhas. A angústia e o medo de que minha noiva estivesse no ônibus envolvido no acidente crescia e o coração estava mais apertado, o peito doendo e já batia a vontade de chorar. Nessas horas a gente tenta manter a calma. Começa a afirmar interiormente que, ‘não, ela não estava naquele carro’. Mas o tempo passando e a falta de informação acabam com qualquer pensamento positivo. O nervosismo começa a dominar as emoções e os atos. Mãos frias, suor, lábios brancos, coração acelerado. Os amigos começam a chegar perto, a olhar com pena, a abraçar, tentam confortar. Nesse momento, creio que oito horas da noite, todos os estudantes do campus Centro já procuravam apoiar os alunos de Rio Claro”.

Um amigo de Pasqualini teve uma idéia que piorou a situação de nervosismo. Eles foram para o laboratório de rádio da Universidade, onde havia um sistema potente de recepção: “Podíamos ter informações das emissoras de Rio Claro. As notícias eram desencontradas e a cada flash, o número de mortos aumentava. Um amigo nosso, repórter de uma emissora, chegou a citar e tentar adivinhar que ele tinha amigos que viajam naquele ônibus e um deles seria eu. Gelei ao ouvir esta informação. Lembrei-me de minha mãe, meu pai e meus irmãos. Precisava dar a notícia de que estava bem. As linhas continuavam congestionadas. Saí pelas ruas e achei um telefone público. Finalmente consegui falar com minha mãe. Talvez depois de meu nascimento essa tenha sido a maior alegria que dei a ela ao me ouvir dizer apenas: ‘mãe, estou bem!’. O grito de felicidade dela foi tão alto que senti como se estivesse ao meu lado. Depois disso, desabei e chorei muito ao telefone”.

Depois de avisar a mãe, mesmo sem saber da noiva, Pasqualini ligou para a futura sogra e avisou que a filha dela estava bem. Apesar de tranqüilizar a sogra, Pasqualini ainda não tinha notícias. Ele disse que todos estavam bem sem ter a informação verdadeira. Mais tarde Pasqualini soube que a noiva não estava no ônibus acidentado, mas o primo dela, Nilson Cazonatto, sim. Cazonatto foi uma das vítimas fatais.
Pasqualini reencontrou a noiva no campus Centro da Unimep depois de uns 40 minutos e foram embora: “No caminho de volta havia tristeza e a tentativa de entender o acidente sem saber a dimensão da tragédia e o número de vítimas, entre mortos e feridos. Ao passar pelo local da batida, ninguém teve a coragem de olhar pela janela do ônibus. O medo era de ver corpos dilacerados pelo chão”.

Enquanto isso, na Santa Casa de Rio Claro, um médico alertou a família Pessoa de que não havia recursos suficientes para dar suporte ao estado grave de saúde em que Jyl estava. Seria preciso conseguir ajuda fora dali. Simone correu para o Grupo Ginástico. Ela sabia que, no clube onde acontecia um jantar árabe naquela noite de sexta-feira, seria possível encontrar pessoas que tinham condições de levar seu irmão de helicóptero até Campinas. Feitos os contatos, o médico de Campinas ligou para a Santa Casa de Rio Claro com o objetivo de checar o estado de saúde de Jyl. Ele havia falecido naquele instante.

Simone voltou para a Santa Casa. Todos queriam poupar Constância da notícia, mas foi inevitável. Para cada falecimento causado pelo acidente, o nome da vítima era anunciado pelo auto-falante do hospital. Foi assim que Constância soube.

Qual o sentimento de uma mãe ao saber, pelo autofalante de um hospital, que seu filho acabou de morrer? Não é o vôo que vai sair do aeroporto, nem alguém procurando por você no shopping. É seu filho que não existe mais de uma hora para outra. Para evitar essas e outras situações semelhantes, alguns cursos de medicina buscam, mesmo que timidamente, a humanização do médico.

Há três anos a Unicamp ensina seus alunos e futuros médicos a tratarem não só da doença, mas da pessoa por trás da patologia.

Quando a morte é motivada por desastres e acidentes, os profissionais sabem que é preciso ter cautela para comunicar a notícia. Venâncio Pereira Dantas Filho é neurocirugião do Hospital das Clínicas na Unicamp e conhece a dificuldade de explicar o óbito para uma família que acabou de perder alguém. O médico, além informar a notícia ruim, tem que lidar com as diferentes reações.

A culpa é um dos sentimentos mais presentes nas famílias que constatam a morte de um ente enfermo. O caso mais freqüente é a averiguação do óbito de um idoso que ficou à mercê do tempo e da pouca vontade dos filhos e netos. Outro exemplo é o de pais que dão de presente ao filho uma moto, veículo campeão em estatísticas de morte no trânsito. Mais do que a culpa, há religiões que não permitem a transfusão de sangue ou o corte de cabelo para cirurgias na cabeça.

Como a maioria dos profissionais da saúde, Venâncio acredita que a maior dificuldade está em lidar com os pais dos pacientes mais jovens. Depois que teve seus dois filhos, hoje com 12 e nove anos, o médico passou a sentir um peso emocional maior em cirurgias que envolvem crianças: “O ser humano enxerga a morte de três maneiras diferentes. Na infância, tudo é mágica. É quando um caminhão atropela um animal e nada de ruim acontece, como nos desenhos animados. Ao se tornar um jovem, a visão da morte é heróica. A pessoa mais nova quer dominar o que não pode ser dominado. As maneiras de concretizar este tipo de sentimento são os esportes radicais e os brinquedos nos parques de diversão. Ao envelhecer, o adulto percebe que é inevitável lutar contra o que é certeiro. Nesta fase o ser humano negocia com a morte. Melhora a alimentação, pára de fumar, de beber, faz exercícios, tratamentos e o que mais tiver ao alcance para prolongar a vida”.

Com o avanço da medicina, os profissionais trabalham focados no tecnicismo, mas são requisitados para responder a numerosos temas que fogem da tecnologia aprendida na faculdade e em cursos de especialização. Dentro dos hospitais é necessário conviver com conflitos familiares, religiosos, dificuldades sexuais, angústias existenciais e uma infinidade de detalhes que envolvem não só uma patologia, mas um paciente e uma família por trás dela.

Ao analisar o caso de Constância Pessoa, que soube da morte do filho pelo auto-falante da Santa Casa de Rio Claro, Venâncio enxerga este procedimento como algo desaconselhável, pois fere e desrespeita a dor do outro. O mais apropriado seria conversar com a família em um local mais reservado. É preciso preparar a família para a notícia fatal.

Adquirir maturidade profissional na área da saúde pode levar tempo. Venâncio busca ajuda na religiosidade. Ele necessita da fé para encontrar um significado e entende que a morte não é um erro da medicina, mas o destino natural da vida. Querer salvar uma pessoa a qualquer custo nem sempre parece ser o melhor. Nas tentativas desesperadas de deixar alguém vivo, a situação pode provocar mais dor tanto para o paciente quanto para a família.

Com esta consciência, Venâncio sabe que não é fácil chegar a uma conclusão, principalmente quando a família solicita “que seja feito tudo o que for possível”. Para discutir questões como esta, foi formada uma Comissão de Racionalização de Tratamento em Pacientes Fora de Possibilidade de Tratamento, um grupo de cerca de sete médicos da Unicamp que procuram encontrar soluções para a prática da distanásia, que é o prolongamento do sofrimento de um paciente terminal.

Dentro da Unicamp, Venâncio é assessor da Central de Captação de Órgãos (CCO) e professor da disciplina de Temas Longitudinais de Bioética. A disciplina está em prática na Faculdade de Medicina da Unicamp há três anos e busca a humanização do médico, o respeito pelas religiões e a consciência de que, muitas vezes, o profissional da saúde vive um tecnicismo tão intenso que esquece de resgatar o lado humano e a linguagem na atuação dentro dos consultórios e hospitais.

Durante as aulas desta disciplina, alguns líderes religiosos são convidados para explicar o que é a vida e a morte segundo a doutrina adotada por diferentes grupos sociais. Os estudantes de medicina já assistiram às palestras sobre a crença dos católicos, espíritas, afro-brasileiros, evangélicos e muçulmanos. É conveniente explicar a vida para depois entender o conceito do óbito. Se nos anos 60 o grande tabu era o sexo, hoje este tabu foi transferido para a morte.

Quando os exames de laboratório apontam que alguém é portador de uma doença terminal, o comunicado do diagnóstico é missão do médico. Ao saber que a própria vida chegou ao fim, o portador da chaga fatal costuma passar por cinco fases emocionais. A descrição detalhada de cada uma delas pode ser encontrada em livros como “O que é a morte”, de José Luiz de Souza Maranhão.

Fases do moribundo
A primeira fase é a da negação. A maioria dos pacientes pergunta “Por que eu?”. A inabilidade de alguns médicos pode comprometer a reação dos pacientes e familiares. Há casos em que eles despejam o diagnóstico de modo rude para que depois a equipe de enfermagem lide com a dor emocional diária do paciente ainda chocado pela notícia de que vai morrer em breve.

Com o doente negando a proximidade do próprio fim, a equipe médica tende a se sentir confortável, pois não necessita se envolver emocionalmente enquanto o paciente tenta se convencer de que não está doente e de que não vai morrer. Existem também muitas famílias de moribundos que se fixam na fase da negação e todos fazem de conta que a morte não existe.

Com o passar dos dias, a realidade e os sintomas não escondem a doença e o paciente pode passar para a segunda fase, que é a da cólera.

Neste período ele sente uma intensa revolta e dirige sua raiva para o médico, o enfermeiro, os visitantes ou até mesmo para a comida do hospital. O sofrimento interno é causado porque o moribundo sabe que vai morrer e as outras pessoas vão ficar vivas.

O psicólogo e coordenador da Rede Nacional de Tanatologia, Aroldo Escudeiro, tratou de uma paciente com câncer. A moça tinha uma filha e um marido, mas este homem a trocou por outra.

Ela ficou com a filha que ainda era bebê, mas o câncer chegou rapidamente. A maior angústia da mãe moribunda foi constatar que a nova mulher do marido lhe roubou tudo. Ela não se queixava porque estava morrendo, mas porque o marido estava vivo juntamente com outra mulher, e o novo casal estava pronto para cuidar de sua filha. Com o acompanhamento do psicólogo Aroldo Escudeiro, a paciente pôde entender e aceitar a própria morte.

A terceira fase de um doente terminal é a da barganha. No estágio da barganha, o paciente tenta negociar com Deus ou consigo mesmo. Promete, faz pactos, insiste: “Se eu me curar, farei isto ou aquilo”. A barganha feita com a morte pode ser observada no filme sueco O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman. Na obra, um cavaleiro joga xadrez com a morte, tentando adiar seu final em uma terra onde a peste castiga sem piedade. “Todo esse processo não resultaria tão traumático e doloroso se as pessoas, mesmo antes do surgimento de um caso de morte na família, conversassem sobre a morte e o morrer como sendo um fato constitutivo da própria vida e do viver”, explica Souza Maranhão, autor do livro “O que é a morte”.

Passada a fase da barganha, surge a depressão. O paciente se conscientiza de que a vida acabou, entra em um estado de silêncio interior e apenas demonstra interesse pelas pessoas mais próximas.

O último e mais difícil estágio a ser alcançado é o da aceitação. Mesmo que o moribundo tenha concebido a própria morte, a família tende a não aceitar e prejudica a manifestação de um sentimento que deveria ser natural.

Não é regra que todos os moribundos passam pelas cinco fases exatamente nesta ordem. Alguns jamais aceitam que vão deixar de existir. A enfermeira Carla Fiori define deste modo: “O momento da morte é um momento solitário, mas muita gente tem medo e disfarça até o último momento. A pessoa finge que ela não está vendo a própria morte. Muita gente faz isso, acho que é maioria”. A atitude pode ser entendida no senso comum de que a esperança é a última que morre, mas segundo Carla: “A esperança é a última que se enterra”.

Ao perceber que um moribundo está prestes morrer, a equipe de enfermagem evita manipular a pessoa, mas tenta ficar próxima e “pegar na mão”. Não é o mesmo que ter um familiar ao lado, mas há os enfermeiros que procuram amenizar este momento naturalmente solitário. Quando o paciente morre, o procedimento é esconder o rosto de quem faleceu para que os outros pacientes do hospital não percebam.

Souza Maranhão detalha a situação: “Quando é possível prever a morte de um paciente em uma enfermaria, ele é deslocado para um quarto privativo. Tudo se passa como se não existissem moribundos no hospital”.

Capítulo V

O corpo de Nercina


"Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?"
A hora íntima - Vinícius de Moraes


O acidente que interrompeu a vida de Jyl aconteceu há 10 anos na SP-127, rodovia que liga Rio Claro a Piracicaba, no interior de São Paulo. Além de Jyl, 18 vidas se perderam no choque entre o ônibus da Companhia Cidade Azul e o caminhão-tanque da empresa de Transportes Ceam Ltda. O motorista do ônibus, Djair Nunes Barbosa (conhecido como Coroné), era de Rio Claro, e o motorista do caminhão, Sérgio Calmo Moura, era de Campinas.

Na estrada, que era de pista única, foi formada uma poça de piche. No Jornal Cidade de Rio Claro, de 22 de maio de 1994, é possível ter noção do horror vivido: “O ônibus transformou-se numa montanha de ferros amassados. Com o forte impacto, vários corpos foram arremessados para fora do ônibus. Os estudantes foram mutilados. A rodovia ficou tomada por piche e sangue. A Polícia Rodoviária teve muito trabalho para controlar a situação. Centenas de pessoas chegavam em busca de informações sobre familiares que estudam na Unimep. Dor e alívio marcavam os rostos daqueles que perdiam parentes e amigos”.

A colisão, que causou tanto estrago, aconteceu porque o motorista do ônibus fez uma ultrapassagem imprudente. A culpa de Coroné consta no Boletim de Ocorrência e na sentença da justiça, mas alguns depoimentos de estudantes, publicados nos jornais da época, confirmam que a história foi diferente.

Na mesma edição do Jornal Cidade do dia 22 de maio de 1994, os estudantes confirmaram que Coroné era um profissional prudente e responsável. Por este motivo, antes do desastre, alguns alunos pediram transferência de ônibus para poder viajar todos os dias com ele no volante. Ironicamente, no dia 20 de maio, o recém contratado da empresa, Daniel Bento de Jesus, guiava o ônibus: “Como tinha sido contratado recentemente, Bento de Jesus cumpria o ritual de acompanhamento por um motorista mais experiente. No caso, o Coroné”. Apesar do erro ter sido cometido pelo novato motorista, foi Coroné quem levou a culpa.

Da Santa Casa, o corpo de Jyl foi levado para o IML. Um cunhado foi reconhecer o corpo. Na correria, causada pela tragédia, o serviço funerário esqueceu de colocar uma proteção para forrar a urna que o carregava. No velório, que aconteceu no Ginásio Municipal Manoel Antônio Bortolotti, o corpo dele começou a pingar sangue. Simone lembra que colocaram um balde embaixo do caixão. Ele foi o primeiro a ser enterrado.
Quando Jyl estava vivo, Constância comentou que gostaria de ser enterrada no Cemitério Parque das Palmeiras, onde ele trabalhou aos 13 anos de idade como cobrador. Jyl ouviu calado e comprou o terreno sem avisar a família. Quando ele morreu, o terreno no cemitério estava pago e a família não precisou se preocupar com o destino de seu corpo.

Seria possível uma família escolher o cemitério, o funeral, a urna e tudo pelo melhor preço? Além do terreno disponível no Cemitério Parque das Palmeiras, o funeral foi providenciado pelo pai do sócio de Jyl: “Como o acidente pegou todo mundo desprevenido, isso ajudou muito. Jyl era organizado e não deixou nenhum assunto pendente”, explica Constância.

Pendência é o que não falta para quem está vivo e tem que providenciar um funeral. Para facilitar a vida da população, existem os serviços funerários. Em Rio Claro, funcionam três empresas do ramo. A funerária do Grupo Bom Jesus, a João de Campos e a Municipal.

Na casa alugada, localizada em uma esquina, está a funerária do Grupo Bom Jesus. Logo na recepção, uma jovem mulher. Móveis aparentemente velhos e um vaso com flores do campo quase murchas. A funcionária é Suzana da Silva Câmara. Há sete meses na funerária, ela nunca viu um cadáver: “E nem quero ver”. Ainda não se acostumou com a situação, e o medo dela é a possibilidade de ver um corpo sendo arrumado: “Quando conto para alguém que eu trabalho na funerária, o pessoal se assusta, acha diferente e sombrio. É um serviço que eles acham que não precisam. Meu namorado não gosta que eu trabalhe com isso. A família dele não bebe nem o café servido em velório”.

Atenciosa e pouco habituada aos assuntos fúnebres, Suzana explica como funcionam os planos funerários. Os preços variam de R$ 420,00 a 3.900,00. O serviço inclui arrumação do corpo no caixão e flores. São mais de 30 modelos de urnas: com alça dura, móvel, urna com ou sem visor, com duas tampas, madeira lisa ou entalhada. Os detalhes são quase infinitos.

Suzana sabe pouco sobre a história da funerária onde trabalha. É quase meio dia e ela está sozinha na casa de esquina. Para confirmar alguns dados, liga para o gerente que está em Piracicaba, cidade onde surgiu o Grupo Bom Jesus.

O Grupo Bom Jesus existe desde 1969, mas se estabeleceu em Rio Claro em 1994. Existem quatro funerárias do grupo espalhadas por cidades da região: Piracicaba, Rio das Pedras, São Pedro e Rio Claro. Em Piracicaba, a estrutura é maior. Os clientes têm serviços de ambulância, aparelhos ortopédicos, assistência médica, odontológica e até cursos de inglês.

O telefone toca. Suzana atende. É o motorista da funerária. Ele avisa que o corpo de uma pessoa, que faleceu em Rio Claro, vai ser transportado para General Salgado. De uma cidade à outra, são cinco horas de viagem. O corpo transportado pertencia a José da Cunha Viana, que morreu aos 47 anos. No documento, que registra o óbito, está a descrição da morte: “Neoplasia gástrica, falência múltipla dos órgãos e caquexia neoplásica”.

Em Piracicaba, o Grupo Bom Jesus conta com o trabalho da assistente social Silvia Del Carmem. A chilena está na empresa desde 1997 e tem a tarefa de ajudar famílias que procuram ajuda. Em Rio Claro, a empresa não oferece apoio emocional aos associados.

A diferente estrutura entre os concorrentes funerários de Rio Claro chega a ser espantosa. Na recepção da empresa João de Campos, que está instalada na cidade há 70 anos, nada lembra a morte. É o avesso. A começar pelo nome de um produto exposto em panfletos dispostos no balcão: Plano Vida.

As funcionárias vestem uniformes. Os móveis combinam entre si na cor cinza e branca. As cadeiras são confortáveis. As recepcionistas são educadas, discretas e sorridentes. Tudo é informatizado, a tecnologia está presente em cada canto.

Em uma cidade com cerca de 170 mil habitantes, o número de associados da empresa João de Campos chega a 90 mil. Não é por acaso. O esforço do proprietário, que herdou a empresa do padrasto, é visível. Júlio César Reis pensa em todos os detalhes. Com seus 30 e poucos anos e rosto jovial, o ‘marqueteiro’ trabalha na empresa desde 1983, mas foi depois que o padrasto morreu que a funerária decolou.

O plano que representa 75% das vendas é o Plano Prata, que custa R$ 904,00. O associado da Funerária João de Campos paga uma determinada quantia por mês e tem direito a diversos benefícios, como desconto no convênio médico com a Unimed, a Uniodonto e empréstimo de equipamentos como cadeira de rodas e muletas. Os preços dos outros serviços variam de R$ 300,00 a 3.500,00.

Em um mês, são preparados cerca de 90 funerais. Reis cuida da parte publicitária, elabora os brindes como o Kit Docinho para as crianças e raspadinhas para os adultos. Com a raspadinha, os clientes ganham relógios e outros objetos: “São os detalhes e a motivação que fazem a diferença. Hoje as pessoas querem pagar as coisas e ter valor em vida. Enterro não é para o morto, enterro é para o vivo”.

Mesmo sem concorrência compatível, a preocupação é agregar valor. O produto da funerária João de Campos tem o efeito onda: “É como você ficar em casa enquanto acontece uma festa, daí você fica fora do contexto. O negócio é entrar na vida das pessoas e ir rodando com esse monte de coisas. O lucro vem da revenda. Não adianta montar toda essa estrutura se eu não entender que o negócio é lucro. A gente mora em um país capitalista, aqui não existe nada socialista”.
Como vender algo que ninguém quer comprar? Reis descobriu: “Preciso entender de gente. Eles compram e não levam nada, só uma lembrança. Eu invisto na lembrança. Se um cliente vem aqui e compra um pedaço de papel, ele paga por esse pedaço de papel durante anos e não leva nada. É complicado! Eu preciso acrescentar coisas em vida e não ficar explicando a urna, o carro que pega o corpo. Isso é como cd de música sertaneja. Pegou? Vende um milhão”.

Na área administrativa da funerária estão o cunhado, a irmã e a mãe de Reis, que no dia da entrevista estava em Chicago, nos Estados Unidos.
Durante a entrevista, a filha de Reis entra na sala correndo, pede doces e beija o pai. Ainda com o uniforme verde e branco da escola particular, a menina de cabelos claros tem um jeito amável. Ela se despede e fecha a porta com cuidado.

Com o olhar inebriante após receber o carinho da filha, Reis ensina que, na negociação dos planos, a urna só é vista “depois que o cliente pedir”. Se não fosse pela tradição do nome, seria impossível saber que a empresa é uma funerária. O proprietário e sua equipe de 20 funcionários organizam os funerais. Em relação aos sentimentos de dor e perda dos clientes: “Não há muito que fazer. Não temos assistente social porque têm aqueles falecimentos em que a família dá graças a Deus, enquanto outras não vêm nem buscar o documento. É muito difícil porque estarei entrando na vida particular do cliente. Como eu vou te consolar se você está preocupado se a casa vai ficar no seu nome ou não?”.

Para recolher os corpos, a empresa tem nove motoristas: “Hoje é mais fácil arrumar quem faça esse serviço por causa do desemprego. No setor funerário não existem cursos de formação. A experiência vai passando de profissional para profissional ou de amador para amador”. O que mais avança no setor são os cursos de preparação de cadáver: “Mas ainda é limitado porque o custo é alto. O Brasil é um país pobre e de classe média. Ricos? Minoria”.

Por mês, a Funerária João de Campos realiza três ou quatro funerais gratuitos para famílias mais pobres. O que existe na cidade é um rodízio entre as concorrentes. A cada semana, uma funerária fica responsável por cuidar de quem morre e não tem dinheiro.

As compras mensais que a empresa precisa fazer incluem doces, brindes e 100 urnas. Depois de explicar como funciona a venda dos produtos, Reis se encaminha para a sala de preparação de corpos, que fica longe da recepção. Novamente, computadores e tecnologia pelo caminho.

Interruptor. A luz ilumina a maca no centro da sala. Ao lado de Reis está o cunhado, José Luiz Modesti Jr., e a única responsável pela limpeza do local impecável, Jandira Almeida da Silva.

Modesti, que também é artista plástico, vai até a maca e puxa o lençol marrom. Susto. O corpo de Nercina Rodrigues Pereira, de contrato número 3030A, está estendido.

A expressão é de dor. A boca aberta, o corpo levemente retorcido, magro e nu. Nercina vai ser preparada para seu funeral, a urna está posicionada ao lado. Enquanto Jandira varre a sala, Modesti diz: “A falecida é tia da Jandira”. Ela afirma sorrindo que era sobrinha de primeiro grau de Nercina. Deixa-se fotografar ao lado do corpo. A situação começa a parecer natural.